Encravada nas dobras da serra, a freguesia da Gralheira desde sempre viveu privada de meios de comunicação e transportes. Telefone não havia; a estrada ficava a 12 quilómetros de distância. Só em 1961, ali foi colocado o primeiro telefone e até esta data foi o único a servir aquela pobre gente, quando não estava avariado. Só neste ano de 1983 é que ali colocaram o segundo telefone. Transportes, só a pé ou a cavalo. A estrada mais próxima era a n.° 2, que passa por Bigorne, onde iam apanhar a camioneta e buscar as mercadorias. Mas da Gralheira a Bigorne são duas horas de caminho, a pé, bem puxadas. Antigamente nem camionetas havia nessa estrada, pelo que tinham de se deslocar à Estação de Mosteirô, na Linha do Douro, para viajarem de comboio, distância que nunca venciam em menos de cinco horas. Era também desta estação que levavam as mercadorias, transportando-as às costas ou em burros por caminhos quase intransitáveis. Com a circulação de camionetas de passageiros entre Lamego, Castro Daire e Viseu, aquela gente sentiu-se ligeiramente beneficiada, mas não viu o seu problema resolvido. Se o tempo estava bom, ainda a viagem da Gralheira a Bigorne e vice-versa se fazia razoavelmente. Mas se estava mau tempo, essa viagem era horrível através de caminhos tão agrestes e desnivelados. O serviço de correio também era feito por uma pessoa a pé entre Bigorne e Gralheira. Quantas vezes essa pessoa teve de fazer a viagem através de fortes nevões que cobriam montes e caminhos ou sob terríveis tempestades de chuva e granizo, pondo em risco a própria vida só para cumprir a missão que lhe era paga com magros escudos. E muitas vezes chegava a Bigorne e não havia correio por a camioneta não conseguir romper a neve acumulada na estrada. Mas esse abnegado servidor, encarregado de fazer circular a correspondência, ali estava no cumprimento do seu dever sem desânimos nem tibiezas, não receando os obstáculos que tinha de vencer durante as longas horas de viagem, em luta com a fúria do temporal. Mas se no Inverno a vida lhe era dura, também no Verão sofria o flagelo do Sol abrasador ao longo daquele caminho sem sombras. Agora o encarregado de fazer o correio, já não vai para Bigorne, mas mais penosa é ainda a sua tarefa. Com a mudança do correio para Tendais, o homem encarregado desse serviço tem pela frente um caminho mais longo, agreste e acidentado. A remuneração que recebe é uma insignificância em relação ao tempo que perde e às energias despendidas. É certo que esta tabela é resultante de um concurso público, onde aparecem vários concorrentes a disputar o lugar. Mas nos dias de hoje já não faz sentido que um servidor dos C.T.T. seja remunerado desta maneira. Esperemos que alguém reveja a situação. COMO SURGIU A PRIMEIRA ESTRADA Durante muitos anos se falou na abertura duma estrada que ligasse a Gralheira ao resto do mundo e muitas vezes foi prometida pelas entidades oficiais. Mas os anos passavam e a estrada não surgia. Todas as promessas eram vãs e o povo deixou de acreditar nelas. A estrada camarária mais próxima era no Rossão, mas ainda ficava a cinco quilómetros e situava-se no concelho de Castro Daire, que não era o nosso. Se pertencêssemos a este concelho, há muito teríamos estrada. Mas a Gralheira pertencia e pertence a Cinfães e da Câmara deste concelho não vinha qualquer auxilio, por tal estrada nos ligar a Castro Daire. Pretendiam que o povo da Gralheira esperasse pelo rompimento da estrada nacional que viria a ligar os dois concelhos, para depois fazerem um ramal das Portas de Montemuro à Gralheira. Tal projecto não deixava de ser útil, mas o povo da Gralheira, sedento de progresso, não podia ficar à espera duma estrada que não se sabia quando chegaria às Portas de Montemuro. E enquanto se discutia o assunto, as pessoas continuavam a morrer sem assistência médica; os doentes transportados em macas ao ombro; as mercadorias em mulas ou carros de bois; e as viagens a serem feitas a cavalo ou a pé. Insatisfeitos com esta situação, os homens da Gralheira resolveram meter mãos à obra. No ano de 1966, por iniciativa do Sr. Alfredo Lourenço da Fonseca, que na altura era vereador da Câmara de Cinfães, organizou-se uma comissão pró-estrada, que procurou angariar fundos com vista ao seu rompimento. Assim, através dum sorteio pela terminação da lotaria nacional e com algumas ofertas, conseguiu-se reunir cerca de cento e vinte mil escudos. A Câmara de Castro Daire prometeu ajuda no que fosse dentro do seu concelho e cumpriu a promessa, como se verificou depois. Em 1968 começou o rompimento a partir da Cruz do Rossão, com uma máquina paga pala Câmara de Castro Daire, dentro dos seus limites e pelo dinheiro angariado pela comissão de melhoramentos no restante percurso. Todo o trabalho manual na abertura de valetas, rebentamento das fragas, nivelamento do piso e cedência de terrenos, tudo foi oferta daquele povo maravilhoso e abnegado, unido no mesmo objectivo, de levar o automóvel à sua querida terra. Houve dias de mobilização geral, onde trabalharam homens e mulheres, rapazes e raparigas, crianças e velhos, em comunhão de esforços para que a estrada fosse uma realidade e não um mito, como altos responsáveis de Cinfães diziam. Esses senhores, que tinham obrigação de ajudar, procuraram por todos os meios impedir que a obra se realizasse. Mas já ninguém conseguia deter aquele povo galvanizado pelo desejo de ver o automóvel na sua aldeia. Os mais incrédulos ainda duvidavam; parecia-lhes tudo aquilo um sonho. Mas quando em Agosto de 1969 chegou o primeiro carro à Gralheira, foi o delírio! Aos mais sépticos, ainda parecia mentira e abanavam a cabeça como que duvidando do que os seus olhos viam. Tudo se preparou para a inauguração, marcada para o segundo sábado de Setembro, véspera da festa em honra de Nossa Senhora da Graça. A notícia da inauguração correu veloz a todos os gralheirenses residentes fora da sua terra e despertou-lhes um desejo enorme de estarem presentes. Era um acontecimento invulgar, sonhado durante tantos anos, que iam ver agora realizado. Pela primeira vez chegariam de carro à sua terra, à festa da Senhora da Graça. Já não precisariam do almocreve em Bigorne para transportar as malas, nem de fazerem tão longa caminhada a pé. Mas quando tudo se preparava para o grande dia, eis que começa a chover torrencialmente. A estrada rompida de fresco, de terra fofa, ficou num autêntico lamaçal. Muitas viaturas ficaram imobilizadas na lama, sendo preciso recorrer à máquina que rompeu a estrada para as rebocar. Autocarros vindos de Lisboa, carregados de pessoas, ficaram em Campo Benfeito por não passarem entre as casas da povoação. Os passageiros tiveram de ser transportados em camionetas de carga, debaixo de chuvas torrenciais. Mas apesar do mau tempo nunca tanta gente se juntou na festa da Gralheira. Foi pena que o tempo não tivesse colaborado. Mas o mais importante estava feito. A Gralheira já tinha estrada. A partir dai terminaram as longas caminhadas a pé e os materiais de construção e mercadorias deixaram de ser transportados em carros de bois ou em burros. Mas para chegar à Gralheira de automóvel não era fácil. Deixava-se a estrada nacional n.° 2 em Bigorne e tinham-se pela frente 13 quilómetros de estrada de terra batida, cheia de covas e pedras, com passagem por Gosende, Campo Benfeito e Rossão. Com o rompimento da estrada nacional a ligar Cinfães a Castro Daire, através da Serra de Montemuro, tornou-se possível a abertura de dois quilómetros entre Picão e a Cruz do Rossão, o que veio encurtar a viagem, na estrada de terra, em cerca de metade. Mas para se abrir esses dois quilómetros de estrada foi preciso lutar muito. O seu principal obreiro foi, sem dúvida, o padre Ilídio. Dinâmico, incansável, teimoso, nunca virou a cara à luta. Em 1975 conseguiu que os militares da célebre Quinta Divisão, estacionados em Castro Daire, fornecessem gratuitamente uma máquina para romper a estrada. Mas eram precisas manilhas, gasóleo e mão de obra. Mais uma vez os gralheirenses, residentes ou não na sua terra, foram chamados a contribuir com trabalho e dinheiro para uma estrada que devia ser da responsabilidade das entidades oficiais. Mas, mais obstáculos foi preciso vencer. A gente de Picão, proprietária dos terrenos onde devia passar a estrada, não os queria ceder. O projecto teve de ser alterado porque, munidos de sacholas e paus, ameaçavam espancar quem ousasse atravessar as suas lameiras. Mesmo nos cabeços onde passa, foi quase à força que se conseguiu o rompimento. Mais uma vez o padre Ilídio foi persistente lutador, nunca se deixando vencer pelo desânimo, apesar de muitas vezes ser ameaçado e maltratado. A mão de obra foi quase gratuita e o dinheiro angariado por comissões organizadas na Gralheira, Porto e Lisboa, chegou para suportar as despesas. Graças à tenacidade daquele sacrificado povo, que tanto lutou e sofreu por uma boa estrada a Gralheira já está ligada ao resto do mundo pois já tem a sua estrada alcatroada onde se pode circular com mais segurança. Apesar de anichada em plena serra, sem vias de comunicação e longe dos grandes centros urbanos, a castiça freguesia da Gralheira não podia ficar insensível ao desenvolvimento que tem alastrado no mundo nas últimas décadas. Esse gigante que se chama progresso transpõe montes e vales e chega às aldeias mais remotas e recônditas da serra, que pareciam condenadas ao isolamento eterno. Assim, a pouco e pouco, o desenvolvimento vai chegando aos pontos mais afastados. A técnica moderna oferece ao homem condições capazes de o levar em todas as direcções e sentidos. Mas as boas estradas são tão necessárias às exigências do mundo moderno, como as artérias são para o corpo humano. É através delas que o progresso caminha a passos de gigante. São as vias de comunicação mais práticas e eficientes da actualidade.
À Gralheira já chega as boas estradas, aspiração antiga da sua
gente. Mas quem viu a Gralheira há vinte anos atrás e a vê hoje, quase não lhe parece
a mesma. A sua fisionomia está profundamente alterada. A luz eléctrica substituiu as
seculares candeias a petróleo e iluminou as ruas. Prédios modernos foram construídos e
outros remodelados. Em muitas casas o colmo deu lugar à telha. Introduziu-se água ao
domicilio e saneamento de esgotos. Construiu-se a barragem-piscina e o centro social.
Fez-se o campo de futebol e lavadouros públicos. Construiu-se a escola, colocaram-se
telefones, calcetaram-se caminhos e rompeu-se o estradão que fez chegar à Gralheira o
automóvel e o progresso.
No Verão muita gente ali passa férias; não só os gralheirenses que labutam fora da sua aldeia e ali vêm matar saudades, mas também pessoas de outras bandas que buscam ar puro, água fresca e sobretudo tranquilidade e sossego. Não há melhor sítio para repouso no fim de um ano de trabalho na vida agitada das grandes cidades. Passar o Verão à sombra das árvores que marginam os ribeiros; beber água pura e cristalina das fontes; respirar o ar puro da montanha: e banhar-se nas águas da piscina, é o melhor tónico para a recuperação de energias, tanto físicas como anímicas. Graças ao progresso e aos benefícios sociais introduzidos pelo Estado, a gente da Gralheira já vive melhor. Tem abono de família, que dantes não tinha. Tem assistência médica e medicamentosa, de que antigamente não usufruía. Tem pensões de velhice e invalidez, que dantes não havia. Praticamente, todas as casas têm os mais variados electrodomésticos. Na parte cultural existe um grupo etnográfico, recentemente oficializado, que canta os cramóis outrora cantados por nossos avós a que tinham caído no esquecimento, se não fora a intervenção oportuna do professor Vergílio Pereira, que em 1947 os recolheu e integrou no Cancioneiro de Cinfães, de que é autor Existe ainda uma orquestra e um rancho folclórico que tem actuado em variadissimas localidades de norte a sul do país, e todos os anos no Verão, organiza um festival de folclore . No comércio existe na Gralheira um restaurante (Costa do Moinho), uma pizaria (Recanto dos Carvalhos), um café (Café Milénio), um talho, uma mercearia, um mini-mercado. Tudo isto são sintomas de progresso e bem estar. Mas na ânsia de progredir não devemos esquecer os bons costumes e valores morais que muitas vezes são arrastados e até destruídos pelas ondas do desenvolvimento. Por isso, o progresso já em marcha deve fazer-se de maneira cautelosa para salvar o mais possível do que existe de belo e tradicional nas danças, nas canções, nas lendas, na poesia, no sossego e nos costumes daquela terra que tem vivido tranquilamente como que adormecida e separada do bulício mundano. Que a terra de nossos avós seja sempre honrada e respeitada, é o desejo de todos nós.
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