A gente da Gralheira sempre teve fama de boa e hospitaleira. Os usos e costumes de outros tempos ainda se mantêm em parte na gente moderna. Mas muita coisa ficou pelo caminho. Apesar de cercados de privações e afastados do conforto e bem-estar de que tantos desfrutam, sentiam-se felizes naquele mundo que era só seu, onde viveram e morreram seus pais e avós. Ali criaram os filhos com as dificuldades herdadas dos seus progenitores, garantindo assim a continuidade de gerações futuras e demonstrando o grande amor e apego que tinham à sua terra.

Quanto a recursos financeiros, era notória a pobreza em quase todas as famílias. Algumas viviam melhor graças às boas propriedades que possuíam. Mas a maior parte vivia pobremente. Estas faziam as terras das mais abastadas e ao fim do ano entregavam-lhes metade dos rendimentos. Mas como ninguém dali saía, tanto por amor à terra, como por falta de emprego nas cidades, havia falta de terras para cultivar. E mesmo as que havia por vezes pouco produziam, devido às más condições climatéricas. Quantas vezes trabalhavam um ano inteiro para numa manhã de geada ou de forte temporal verem todo o seu trabalho perdido e inútil. Quem trabalhou ou trabalha no campo pode avaliar quanta angústia sentem esses pobres lavradores, quando, ao fim de um ano de canseiras e sacrifícios vêem as suas culturas perdidas a sua obra desfeita. Sempre, que tal sucede, olham tristemente para os campos devastados, vendo-se, por vezes, lágrimas de amargura nos seus olhos! Mas apesar de tudo isso, aquela pobre gente não se deixa vencer pelo desânimo e pede a Deus, com fervor, que no ano seguinte lhes dê melhor sorte.

A sua maneira de vestir, era genuinamente regional. As suas roupas eram confeccionadas exclusivamente da matéria prima que a terra produzia. Durante o Verão, vestiam-se de linho e estopa, no Inverno usavam roupas de burel, feita da lã das ovelhas. O linho era cultivado nos campos. Se lhes era útil, também lhes dava muitas canseiras. É uma cultura bonita, agradável mesmo, dando ao ambiente um aspecto de jardim, quando florido, mas exige do cultivador muito trabalho e cuidados especiais até que se transforme numa bonita peça de pano.

Vejamos as voltas que o linho levava desde que era semeado até à confecção dum lençol ou duma toalha de altar.

Depois de semeado e mal tivesse nascido, nunca a terra podia secar para que o linho se desenvolvesse, obrigando o cultivador a um serviço de rega constante. A seguir vinha a monda, serviço moroso e delicado, exigindo cuidadas especiais para que ao tirar-lhe as ervas daninhas não fosse pisado ou arrancado. Quando maduro era tirado da terra e atado em molhos para ser conduzido à eira. Aí era ripado em instrumentos próprios, onde lhe tiravam as cabeças, em que se alojavam as sementes, que depois serviriam para fazer novas sementeiras e também para aplicação medicinal, pois dessas sementes faziam-se as tais papas de linhaça que aplicavam no tratamento de certas doenças. Depois de separado da semente, era novamente atado em molhos e lançado à água nos ribeiros e regatos, para apodrecimento da casca exterior, embora isso constituísse infracção reprimida pelos guarda-rios por ser prejudicial à vida dos peixes.

Ao fim de três semanas de molho, era retirado da água e estendido nas lameiras a secar, onde permanecia até ficar com uma cor esbranquiçada. Depois era novamente conduzido à eira, onde se procedia à maçagem, para libertar os fios internos da casca exterior à força de pancadas com a maça. Este trabalho era muito divertido. Nele compareciam todos os rapazes e raparigas da aldeia, executando o serviço mutuamente, enquanto falavam dos seus amores ou cantavam lindas cantigas.

Depois de maçado, o linho era tascado e sedado em instrumentos apropriados, a fim de separar o linho da estopa, trabalho feito normalmente por mulheres idosas, durante o Inverno, em dias de soalheiro. Do linho propriamente dito, faziam as estrigas, fiadas depois nas seculares rocas de cana e no fuso que mãos hábeis manobravam, durante os serões nas noites de Inverno, formando assim as maçarocas. Nas roças e fusos fiavam também a estopa, tarefa mais difícil, por ser fibra mais grosseira e áspera, trabalho feito, quase sempre, por veneradas velhinhas, que se viam obrigadas a «beijar» a estopa, para que o seu trabalho ficasse perfeito. O termo «beijar» significa maciar a estopa com saliva para a poder fiar melhor. Acabada a fiação, procedia-se ao arranjo das meadas com o auxílio do sarilho, onde se enrolavam os fios das maçarocas, à medida que ele rodava.

Terminada esta tarefa, estendiam-se as meadas nas lameiras, a corar, geralmente no mês de Março, por ser tempo mais macio e húmido. Quando as meadas estavam nesta fase, nunca se podiam deixar secar, sobretudo se houvesse Sol, porque, se tal sucedesse, ficavam queimadas. Por isso, exigiam a presença permanente de uma pessoa, para as molhar de vez em quando. A certa altura, metiam-se numa barrela, feita num grande cortiço, onde metiam também roupas, envolvidas em água quente e cinza. Não há nódoa que resista à acção de limpeza de uma barrela bem feita, nem há detergente mais eficaz para deixar a roupa verdadeiramente branca. Tiradas da barrela, as meadas eram lavadas e estendidas novamente a corar, até ficarem da cor da neve. Depois iam à dobadoira, para serem transformadas em novelos. Destes enchiam-se as canelas por intermédio do caneleiro, que depois eram levada aos teares.

Nesses instrumentos rudimentares de tecelagem, e graças às habilidosas mãos das mulheres, os fios cruzavam-se sucessivamente até se transformarem numa peça de pano com dezenas de metros de comprimento. Esta peça de pano voltava à barrela para a libertar de qualquer mácula que tivesse apanhado durante a tecelagem e novamente lavada nas águas purificadoras dos córregos ou ribeiros. Só depois da execução de todos estes trabalhos, é que o tecido de linho ficava pronto para a confecção de lençóis, toalhas, calças, camisas e ceroulas, que aquela gente usava nos dias quentes de Verão. Com a estopa procedia-se de igual modo e aplicava-se na manufactura de sacos para o transporte de cereal.

As roupas de burel, que usavam no Inverno, também davam muito trabalho. Vejamos como se procedia à sua confecção.

Tosquiadas as ovelhas por alturas do S. João, a lã era lavada e arrumada até que chegasse o Inverno, por no Verão não haver tempo disponível para tal serviço. Chegado o Inverno faziam a escarpiada normalmente onde se cozia o pão para aproveitarem a temperatura mais quente, que consistia em desfiar a lã de maneira a torná-1a mais solta. Nessas escarpiadas estavam presentes todas as raparigas da aldeia e os rapazes também não faltavam. Estes sentavam-se ao lado das suas preferidas, se ainda tinham oportunidade para isso, porque, muitas vezes outros se antecipavam. Ajudavam-nas no trabalho enquanto namoravam ou contavam anedotas. As pessoas idosas ficavam junto da lareira. Enquanto as mulheres colaboravam na escarpiada, os homens entretinham-se a jogar as cartas.

A lã desfiada deitava-se para o centro da roda e o monte ia crescendo até que os circunstantes ficavam quase ocultos, facto que os namorados aproveitavam para, às escondidas. falarem dos assuntos mais íntimos. Finda a escarpiada, que terminava sempre para além da meia noite, era oferecido o ceote ao pessoal pelo dono da casa, que consistia normalmente em bola com salpicão ou presunto, regada com vinho e aguardente. Terminado este trabalho, a lã ia ao cardador que, depois de lhe aplicar um ingrediente feito à base de azeite, procedia à cardagem por intermédio de cardas, deixando-a em condições de ser fiada com mais facilidade.

O último cardador foi o Sr. Manuel Lopes, ainda vivo. A fiação era feita numa grande roda de madeira, que funcionava num barrote colocado ao alto na extremidade de um banco e ligada ao fuso, situado no lado oposto, por intermédio duma correia. As mulheres que executavam esta tarefa, tocavam a roda com uma das mãos e com a outra seguravam a lã, orientando a fiação, conforme o seu desejo, mais grossa ou mais fina. As maçarocas resultantes da fiação, eram novamente metidas no fuso para torcer e só depois estariam em condições de irem ao tear. Fiava-se também em pequenos fusos, à lareira, e no monte enquanto guardavam o gado. Quanto à tecelagem, procedia-se como com o linho; mas enquanto as teias deste saíam prontas a serem utilizadas na confecção de vestuário, lençóis e toalhas, com as teias de lã não sucedia o mesmo. Era preciso levá-las ao pisão, espécie de fábrica rudimentar, para que o tecido ficasse mais forte, transformando as teias em resistente burel. Só assim ficava em condições de se poderem confeccionar os casacos, calças, capuchos, capotes e boinas de orelhas, que a gente usava durante a época fria.

Diz a gente mais idosa que, dantes, só tinham um fato de fazenda quando casavam e era esse que levavam depois para a sepultura. Com o calçado sucedia o mesmo. Os primeiros sapatos eram os do casamento e muitas vezes os do funeral. Durante o Verão andavam quase todos descalços e no Inverno usavam tamancos. Tinham sempre dois pares, sendo uns para o trabalho e outros para os domingos e dias festivos. A roupa das mulheres era feita quase dos mesmos tecidos, só na confecção das saias é que utilizavam um tecido mais fino que o burel, embora fosse também de lã. Faziam também grossas camisolas e meias, que usavam durante o Inverno. O vestuário de burel e de linho está hoje posto de parte, a não ser os capuchos que ainda usam.