CARVOEIROS E ALMOCREVES
Por não haver uma estrada que
permitisse a circulação automóvel, almocreves e carvoeiros cruzavam a serra em todas as
direcções. Eram eles os transportadores de tudo através da serra nas constantes viagens
que penosamente faziam, sobretudo entre a região do Paiva e Lamego, onde a Gralheira
surgia como ponto intermédio e de passagem obrigatória. Transportavam batatas de Penude
que vendiam na Paiva e, de volta, traziam milho, azeite e carvão para Lamego. Vinho,
mercearia, bagagens, tudo era transportado por almocreves, em odres ou sacos que
carregavam no dorso das mulas.
Todo este movimento justificava a
existência duma albergaria onde pudessem pernoitar e acolher as bestas. Para isso havia a
pensão do Sr. Cardoso, mais conhecido por «Brasileiro» que ali dava guarida a ricos e
pobres. Tanto recebia em sua casa o carvoeiro sujo e humilde, como o caçador ou turista
mais fidalgo. Nunca nenhum desgraçado lhe bateu à porta que não encontrasse uma malga
de caldo para matar a fome e uma cama ou palheiro para dormir. A casa era grande e do
sótão fazia camarata onde albergava os mais humildes. Nos quartos alojava os de maiores
recursos financeiros, a quem cobrava caro pela hospedagem para compensar o pouco ou nada
que recebia dos pobres.
Tudo isto se passou nas primeiras
décadas deste século e já nessa altura aquela pensão não era iluminada a petróleo.
De um grande gasómetro instalado à entrada da casa, alimentado a carboneto, partiam
tubos cheios de gás que se ramificavam pelo edifício, com interruptores e bicos nos
terminais que, uma vez acesos, enchiam a casa de brilhante luz. Com a morte do
«Brasileiro», no fim dos anos trinta, tudo acabou. A pensão fechou e o gasómetro não
voltou a funcionar.
Mas os almocreves e carvoeiros
continuaram a lutar pela vida e a percorrer a serra ainda durante muitos anos. Só na
década de sessenta desapareceram definitivamente. Quantas vezes foram surpreendidos na
serra pelo cair da noite, no meio de terríveis tempestades de chuva e neve, com o
ribombar dos trovões a fazerem alternância ao uivar dos lobos. Na escuridão, que só os
relâmpagos quebravam aqui e além, era impossível seguir o invisível carreiro que os
devia conduzir a porto seguro, à povoação da Gralheira. Embrenhados em densos nevoeiros
e fustigados por fortes ventanias, quantas vezes se perderam, caminhando sem rumo e à
mercê do destino. Depois de andarem errantes pela serra durante longas horas, chegavam à
aldeia quase a sucumbir de frio e fome, com a última esperança de salvamento
desvanecida.
Lembro-me de, num certo dia de terrível
tempestade, ter batido à porta da nossa humilde casa um almocreve de Penude com o burrito
carregado de milho. As fortes pancadas que bateu na porta traduziam bem o desespero que
lhe ia na alma. Depois de acolhido com a solicitude e carinho que nos era possível, o
homem, de lágrimas nos olhos, contou a sua triste viagem. Perdera-se na serra e caminhara
à sorte, sem saber para onde. Quando viu a luz da nossa candeia através da janela, quase
não quis acreditar que estava salvo. Nesse dia tínhamos cozido a fornada e à noite
havia serão. A casa estava quente e o homem pode enxugar as roupas molhadas, depois de
substituídas por outras, postas à sua disposição. O burrito foi guardado no curral,
com feno na manjedoura. Ao almocreve foi fornecida ceia e cama e, no dia seguinte, retomou
a viagem.
Antes de partir deixou, como recompensa,
palavras de gratidão e lágrimas de reconhecimento. Muitos outros tiveram igual sorte. O
último carvoeiro a percorrer a serra foi o tio Joaquim Maravilhas, de Penude, que por ali
andou enquanto as forças lho permitiram. Jumenta ruça à frente, carregada com três
sacas de carvão, que quase lhe encobriam as orelhas, e Joaquim Maravilhas atrás, com
meia saca às costas e tamancos ferrados a guilhos nos pés, que faziam grande ruído no
lajedo do caminho, em alternância ou sincronia com as ferraduras da ruça. Durante muitos
anos, esta imagem entrou no quotidiano da gente da Gralheira. Homem e burra faziam parte
da paisagem serrana e era frequente ver-se a sus silhueta projectada no horizonte, nos
cerros da Costa Lapa. Joaquim Maravilhas era figura típica da região do Paiva e de toda
a serra. Muito carvão transportou do Perneval e das
Levadas para Lamego. Ali gastou quase toda a sua vida. Com a sua morte, desapareceram os
carvoeiros.
O carreiro por eles trilhado em
direcção às Portas de Montemuro, já desapareceu na densidade do matagal. Mas não
foram só os almocreves e carvoeiros que enfrentaram na serra as tempestades e as ameaças
dos lobos. Algumas mulheres trilharam o mesmo caminho na luta pela vida. Tia Rosa, Delfina
e Maria Augusta, três das mulheres que passaram os melhores anos das suas vidas, a
transportar mercadorias à cabeça, para a Paiva e vice-versa. Das três, só a Maria
Augusta sobrevive e ainda recorda e conta as suas atribuladas peripécias. A Rosa e a
Delfina, que durante a vida foram companheiras e partilharam alegrias e tristezas, nem a
morte as separou, pois faleceram no mesmo dia e foram colocadas lado a lado na mesma
sepultura.
Pelo que ficou dito, facilmente se
compreende a razão por que a gente da Gralheira sempre foi mais aberta e comunicativa que
qualquer outra da região. O seu permanente contacto com pessoas estranhas, que por ali
passavam, deu-lhes novos conhecimentos e outras normas de convivência. Talvez por isso, o
povo da Gralheira é considerado bom e hospitaleiro.
CENAS DRAMÁTICAS DE OUTROS TEMPOS
Tal como certamente sucedeu em muitas
outras terras, tambem a gente da Gralheira cometeu faltas e erros dignos de repulsa, que
vieram a ter o merecido castigo. Conta-se que, em tempos remotos, houve naquela freguesia
dois indivíduos que, pela vida ociosa que levavam, eram considerados fidalgos pelo povo.
Tocavam instrumentos musicais de corda e a sua vida era tocar nos diversos bailes que se
realizavam na Gralheira e redondezas. Talvez por isso, não estavam bem conceituados
perante a população trabalhadora, que por vezes os melindrava com provocações de toda
a ordem. Para se vingarem de tais afrontas, os dois indivíduos foram a Lamego denunciar
várias pessoas da sua terra, de promoverem conspirações contra o regime que então
vigorava no País.
Alguns dias depois, aquela aldeia era
invadida de surpresa pelo Exército que castigou severamente os acusados e incendiou
várias casas, sendo os seus habitantes obrigados a fugir para não morrerem queimados,
deixando envolvidos nas labaredas todos os seus haveres, tudo o que possuíam para seu
sustento. O Exército regressou a Lamego, mas o ódio e o desejo de vingança ficou
semeado no coração daquela gente, que viu o seu lar desfeito, todo o seu mundo
destruído.
Conhecidos os autores de tão infundada
acusação e de tão nefando acto, em breve o ódio e desejo de vingança os levou a
planear um terrível crime. Toda a gente da freguesia se sentia revoltada contra os
indivíduos que tinham trazido a destruição a alguns lares da sua terra. Reuniram-se
para decidirem que esses dois homens fossem condenados à morte duma maneira selvática.
Ficou combinado que teriam de comparecer, pelo menos, duas pessoas de cada casa, para em
dia marcado se incorporarem num cortejo, onde seguiriam os dois condenados que receberiam
agressões de toda a espécie até sucumbirem. Se assim o planearam, melhor o fizeram.
Chegado o dia combinado, como os
acusados se refugiassem numa casa e recusassem sair, ameaçaram-nos de lançar o fogo ao
prédio e queimá-los vivos. Perante esta ameaça, resolveram sair, para serem logo
agredidos com facadas, pedradas, pauladas e todo o género de agressões por uma multidão
sedenta de vingança e de sangue. Dali seguiu aquele terrível cortejo em direcção à
Presa, que fica a uns quinhentos metros de distância da povoação, onde os agredidos
acabaram por falecer, vítimas de tão bárbaras agressões. No lugar onde vieram a
sucumbir, foi erguida uma tosca cruz de pedra, a simbolizar o triste acontecimento e
aquele local passou a chamar-se «CRUZ DA PREZA».
Mas os autores de semelhantes
barbaridades, ainda não satisfeitos com os crimes cometidos, foram festejar a sua
vingança satânica. Mataram um carneiro e fizeram grande boda nas lameiras dos Vales da
Gralheira, usando trajos encarnados em sinal de regozijo pelos crimes praticados. Mas,
passados alguns dias, já o Exército de Lamego estava de novo na aldeia, depois de ter
sido avisado do sucedido por umas tias das vítimas, conhecidas pelo nome Cardosas. Alguns
assassinos conseguiram escapulir-se e nunca chegaram a ser presos. Mas outros foram
apanhados e condenados a vinte e oito anos de degredo em África. Além disso, o Exército
lançou fogo a muitas habitações e só a pedido duma senhora fidalga, de grande valor,
é que o comandante deu ordens para porem termo aos incêndios a terminar as represálias.
Contam os antigos que um dos assassinos
fugitivos tendo deixado um filho de pouca idade a Cutelo, entregue a uma senhora idosa,
por três vezes essa senhora teve necessidade de o ocultar: uma vez debaixo das
avantajadas saias; outra dentro duma grande panela; e ainda outra no curral dos suínos,
para que o não levassem como refém. Dos diversos condenados que seguiram para África,
só um voltou, mais tarde, à sua terra natal. Foi o tio Fernandes. Dizia ele que, tendo
regressado à sua aldeia, apenas uma pessoa o reconheceu, tal fora a mudança sofrida
pelos desgostos e martírios durante o degredo.
Contrito e arrependido dos erros
cometidos, procurando afugentar da consciência os remorsos que o atormentavam, todos os
dias, à tardinha, se dirigia à capelinha situada à entrada da povoação, junto do
cemitério, pedir ao Senhor da Boa Morte, perdão dos . seus pecados, em cumprimento duma
promessa que fizera, se voltasse vivo à sua querida terra. Poucos anos mais durou o tio
Fernandes, mas esses foram de penitência e oração, baixando à sepultura reconciliado
com Deus no arrependimento dos seus pecados.
Devido a esta sucessão de crimes tão
horrendos, Deus enviara o castigo do Céu àquele povo, tornando os seus campos
improdutivos. Vieram então os missionários abençoar aquelas terras que diziam estar
amaldiçoadas e que a partir dai passaram a dar boa produção. A lameira onde comeram a
boda, após a prática do crime, passou a dar pouca erva e de fraca qualidade, dizia-se
ser da maldição que outrora sofrera, por ali terem comido o carneiro após a prática do
crime. Depois de terem cometido tão horrendos crimes, a gente das redondezas,
referindo-se aos assassinos, dizia: "Judeus e piores que judeus, porque os judeus
comeram um galo e eles comeram um carneiro". Outras irregularidade se praticaram
naquela terra, mas apenas, cito estas por se terem revestido de maior gravidade e de
características for do vulgar.
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