Durante muitos séculos o povo da Gralheira manteve-se unido no seu reduto. Quem ali nascia ali morria, depois de uma vida sedentária, com privações de toda a ordem, mas feliz num mundo que era só seu, onde todos pareciam pertencer à mesma família. Muito raramente emigravam e, quando o faziam, era em direcção ao Brasil, a terra das patacas. Poucos casavam fora da freguesia, de modo que a comunidade da Gralheira tinha, forçosamente, que apresentar aspectos de verdadeira família. Assim deve ter acontecido desde a sua fundação até aos últimos anos da década de cinquenta, deste século. Foi a partir daí que a emigração começou, despovoando a aldeia de pessoas novas e válidas. Na década de sessenta foi um autêntico êxodo, a caminho de Lisboa. O estrangeiro não os seduziu, a não ser um ou outro, mas em número muito reduzido. Lisboa foi a grande atracção, com a facilidade de emprego que houve nessa época. Nas não foi sem amargura que deixaram a sua terra. Muito lhes custou abandonar a aldeia onde nasceram. Quantos hesitaram antes de o fazer. Mas a descoberta de um mundo novo e a esperança de melhor vida forneceram-lhes forças físicas e anímicas capazes de vencer qualquer resistência na partida. Mas, já longe, perdido no bulício da grande cidade, envolvido na vida agitada do dia a dia; embrenhado naquele mundo desconhecido, quanto se arrependeu o emigrante de ter saído da sua aldeia, quanto desejou voltar! Quantas lágrimas vertidas em silêncio quando, ao findar um dia de trabalho, se encontrava só, no isolamento do seu quarto ou no desconforto duma barraca! Deitado sobre a cama, num ambiente que lhe era estranho, deixava desfilar na sua memória as mais belas imagens de quanto deixara na sua querida terra. De olhos cerrados, como que sonhando, recordava agora a família, os amigos e tudo que lhe era querido. Parecia-lhe ver a sua aldeia, muito junta, muito unida, com as casas cobertas de colmo, anichada num recanto da serra. Os serões, as desfolhadas, as romarias, a neve, o sussurro das águas, o tocar do sino, o canto das aves, tudo se desenhava na sua mente, alimentando a forte nostalgia em que mergulhava. Entretanto outros chegaram e juntos, vivendo em comum as saudades que sentiam, foi mais fácil adaptar-se à nova vida. Formaram-se comunidades de emigrantes que reuniam de vez em quando. Mas o desejo de regressar um dia mantinha-se sempre vivo e actual. Durante alguns anos não foi possível visitar a terra que amava, tanto por ausência de recursos financeiros, como por falta de férias. A viagem era longa e cara e não havia estrada até à sua aldeia. Com salários baixos, a economia era difícil. Mas, mesmo assim, à custa de muitos sacrifícios, conseguia economizar o bastante para dar auxílio financeiro aos pais ou irmãos que na aldeia viviam com dificuldades. Graças a essas ajudas, os que ficaram na Gralheira passaram a viver melhor. Mas os anos decorreram e com o rompimento do estradão em 1969, a ligar a Gralheira ao resto do mundo, tornou-se mais fácil visitá-la. Em autocarros alugados pelo Alberto, ali passaram a vir em força todos os fins de semana, de Abril a Outubro. No Natal e na Páscoa também não faltavam. E então pode ver-se o contraste entre as duas viagens. Na vinda, tudo canta e ri, numa demonstração de alegria e felicidade por estarem de volta à terra onde nasceram. Era um desejo há muito acalentado e que agora ia ser realizado. Depois de uma noite de viagem, a camioneta chega à Gralheira por volta das oito horas da manhã de sábado. Muita gente à espera, na expectativa de poder abraçar familiares e amigos há muito ausentes. Mal a viatura surge, Vale do Lobo abaixo, logo se gera alvoroço nos que esperam, procurando cada um colocar-se em sítio onde melhor possa ver a chegada do autocarro. Os que viajam já vêm de pé, desde que avistaram a povoação. A camioneta ainda vem longe e já se ouvem cantigas e grande algazarra, sinónimo de contentamento. Terminada a viagem na Calçada da Ponte, a confusão é enorme. Enquanto uns trocam abraços e beijos com lágrimas de alegria à mistura, outros procuram as suas bagagens no meio daquele amontoado de malas, sacos e até mobilas. Mas passados alguns minutos, já o local está deserto e o entusiasmo estende-se agora a todas as casas onde os emigrantes regressaram Nas ruas trocam-se cumprimentos e sorrisos. Nas tabernas nota-se um movimento anormal; bebe-se, conversa-se, discute-se, mas tudo em boa harmonia. É o escape de longos meses de ausência. Uns ficam trinta dias de férias, outros regressam a Lisboa no dia seguinte. É essa viagem de regresso que os entristece e preocupa, já que os espera a vida agitada e barulhenta da grande cidade. Os que ficam de férias ainda passam uns quinze dias despreocupados, mas nos restantes já pensam na partida. Parece-lhes que os dias se evaporam, que fogem a uma velocidade diabólica. Chegado o dia de regresso a Lisboa, é notória a tristeza no rosto dos que partem; e o ambiente que rodeia a camioneta mais parece o de um funeral. Vêem-se lágrimas de despedida, mas não são de alegria e, durante a viagem, tudo dorme ou medita na vida que os espera no dia seguinte. E se alguém que não conhece a alma deste povo, observa as cenas atrás descritas, perguntará que encanto, que magia tem aquela terra para os prender ali! Que atracção existe para que façam tão longa viagem, às vezes por tão pouco tempo! Não terá Lisboa uma vida mais cómoda que a Gralheira? Claro que tem. Mas faltam-lhe os largos horizontes, o sossego dos campos, o ar fresco da montanha, a água pura das fontes, o calor duma lareira e a tranquilidade duma aldeia. São estes valores que não existem na cidade e que todos buscam na pacatez duma aldeia, ainda que pobre e humilde. Mas nem só estes valores os atraem à sua terra. É que para além de tudo isso, ali nasceram e foram criados. E tal como um filho não pode, nem deve abandonar seus pais, só porque são pobres e humildes, também nós não podemos, nem devemos esquecer a terra onde nascemos e que foi berço de nossos pais e avós, ainda que essa terra seja tão pobre como a nossa Gralheira. Só assim não pensam os degenerados, aqueles que dominados pela vaidade e capricho, se julgam superiores aos demais e sentem vergonha das suas origens. Estes não passam de pobres mortais, despidos de sensibilidade e amor. Mas a grande maioria dos gralheirenses, residentes ou não na Gralheira, não pensam nem sentem como aqueles. Amam tanto a sua terra que vivem ansiosos que chegue o tempo da reforma para regressarem de vez. A prova está nas lindas casas que muitos já mandaram construir. É fruto do seu trabalho e obra do grande amor que os liga à sua terra. Graças a isso, a Gralheira é hoje mais bonita. Sentimento digno e nobre o dessa gente que espera voltar um dia. Desejo-lhes, sinceramente, que num futuro próximo, possam voltar de vez.
Como já afirmei o povo da Gralheira é tradicionalmente católico.
Desde sempre aquela gente se identificou pelo fervor com que cumpre os seus deveres
religiosos, nunca faltando a uma missa ao domingo e comparecendo até muitas vezes às
missas da semana. Assíduos na confissão, procuram sempre cumprir a rigor os Mandamentos
da Santa Igreja. É certo que muitos cumprem esses preceitos por tradição, por rotina,
só porque seus pais e avós assim fizeram. Mas a maior parte são católicos a valer,
embora tenham as suas falhas como qualquer ser humano. Para lhes dar assistência
religiosa e espiritual, existe naquela paróquia um padre que abrange também as
freguesias de Alhões e Panchorra. Dantes era só da Gralheira e Panchorra, mas devido à
falta de sacerdotes que hoje se verifica, passou a ter a seu cargo também a paróquia de
Alhões.
A Igreja da Gralheira situa-se no centro da freguesia. Até 1950, era
mais pequena e não tinha torre. Os sinos estavam colocados num velho campanário, que foi
demolido quando se aumentou a Igreja e construiu a torre. O acesso ao campanário era
feito através duma tosca escada de madeira, apoiada sobre o muro do adro. Só os mais
afoitos conseguiam subi-la. Os medrosos, sobretudo as mulheres, tocavam o sino cá
debaixo, puxando num arame ligado ao badalo e que pendia ao longo da parede do campanário
até à altura duma pessoa com uma
Certo dia de Sesta Feira Santa estava um grupo de rapazes conversando e
traquinando ao fundo do adro. A dada altura chegou o Manuel Cardoso, deficiente motor por
ter caído de um poste que suporta as linhas de alta tensão, rapaz maroto, sempre pronto
a pregar a sua partida. Dirigindo-se ao grupo, pediu, em tom suplicante, que um deles
fosse tocar três badaladas no sino, porque o Sr. Abade tinha-lhe pedido que o fizesse,
mas como era aleijado tinha dificuldade em subir a escada. No primeiro instante, todos se
prepararam para correr em direcção ao sino; mas como houve quem lembrasse que naquele
dia não se podia tocar, todos suspenderam a marcha. Porém o Cardoso retorquiu que nisso
também o padre tinha falado, mas que não havia mal algum em tocar três badaladitas para
chamar as beatas à confissão. Perante estes argumentos, todos correram em direcção à
escada e o Herculano, que ia à frente do grupo, tocou o sino. Ainda não tinham descido e
já o padre saía da Igreja, furioso, a perguntar quem tinha praticado tal acção. Como
todos disseram que fora o Herculano, o padre respondeu nestes termos: -"Se não
fosses filho de quem és, arrancava-te as orelhas". Enquanto isto, o Manuel Cardoso
desfazia-se a rir ao fundo do adro e voltando-se para o Herculano, que se aproximava
cabisbaixo e envergonhado, disse-lhe: -"Ainda tiveste sorte em seres filho de quem
és, senão ficavas sem orelhas".
A gente da Gralheira paga por ano ao padre duzentos alqueires de milho ou centeio de congrua. Além deste pagamento certo, têm ainda de pagar nos casamentos, baptizados, funerais e missas. E é daqui que o padre arrecada a receita necessária à sua sobrevivência. Dantes cada casal de noivos tinha de lhe oferecer uma galinha para ler os banhos na missa. Esta não podia dizer «pi» nem «cró», o que significava não ser franga nem galinha choca. Antigamente o preço a pagar ao padre por um funeral era exageradamente alto: sete varas de linha e uma cabra. É certo que o linho podia ser de qualquer espécie e a cabra desde que se segurasse de pé. Certamente que este preço foi estabelecido quando a Gralheira pertencia a Ferreiros de Tendais, em que os cadáveres ali eram sepultados. De qualquer modo era muito caro. Não bastava a dor que sentiam pela perda dos entes queridos, senão ainda ficarem a braços com uma despesa que não podiam suportar. Muitas vezes gerava-se discussão entre a família do falecido e o padre por causa da cabra. O padre queria uma cabra boa; eles alegavam que tinha de aceitar o que lhe dessem. Certo dia um indivíduo foi levar a cabra ao padre, como era da praxe, em pagamento do funeral de seu pai. Como a cabra só tinha um chifre, o padre observou: -"Então a cabra só tem um corno'? O homem respodeu: -"Não se preocupe, Sr. Abade, que o outro está-lhe a nascer". Quando a Gralheira passou a freguesia, os defuntos eram enterrados no adro da Igreja, havendo ainda pessoas vivas que se lembram de tal acontecer. O cemitério actual, ainda não tem cem anos e era para ser construído mais acima, onde chegaram ainda a sepultar um cadáver, que depois teve de ser trasladado, para ficar junto dos outros no cemitério actual. Depois de ter narrado o que é a vida na Gralheira na época invernosa, em que os trabalhos do campo ficam praticamente parados devido ao rigor do tempo, quero agora descrever as canseiras daquela gente, da Primavera ao Outono. Se é certo que durante os meses de Fevereiro e Março, se o tempo permite, já os homens se dedicam a cavar montes e tapadas para depois na devida altura, semearem o centeio, a verdade é que o trabalho começa a valer só no mês de Abril. Nos primeiros dias deste mês guardam-se as lameiras, onde as vacas vinham pastando, para em Julho ali cortarem o feno, passando então a trazê-las nos campos, onde a erva e a ferrã se encontram já crescidas. Nesse mês plantam-se as hortas e semeiam-se as batatas nos terrenos mais secos. Num determinado dia, que o padre indicará na missa a pedido do Presidente da Junta, vai um homem de cada casa proceder ao arranjo dos caminhos, que as enxurradas escavaram durante o Inverno, abrindo sulcos e buracos que é preciso aplanar, para que os carros, puxados por vacas, possam transitar mais facilmente, durante a época trabalhosa. Quem pagava o vinho que os homens bebiam no dia de arranjo dos caminhos era o arrendatário do monte. Arranjados os caminhos, começam a tirar o estrume dos currais e a transportá-lo para os campos e searas, onde vão semear as batatas e o milho. Passam assim o mês de Abril, entregues quase exclusivamente ao transporte do estrume e à sementeira das batatas. O estrume, que é transportado nos carros guarnecidos com sebes de verga, destina-se a fertilizar as terras, porque os adubos químicos ainda não encontraram venda aceitável naquela terra serrana, talvez por ali haver estrume em abundância. O transporte do estrume faz-se de madrugada e ao meio dia. Deixam os carros carregados de véspera e ao romper do dia lá vão transportá-lo para as searas, muitas vezes bem longe da povoação. É um serviço pouco higiénico, mesmo sujo, mas quanto alegre e agradável se torna! Quando as madrugadas estão serenas e o frio não se faz sentir, é encantador seguir ao longo daqueles caminhos, entre árvores e lameiras verdejantes, ao som característico do chiar dos carros, que por vezes chegam a formar comboios de trinta e mais composições. E no meio daquela chiadeira inconfundível, a que se juntam as vozes dos lavradores incitando os animais ao trabalho e o som das campainhas que as vacas trazem ao pescoço, ouve-se ainda a todo o instante o cantar dos cucos, das rolas e de toda aquela passarada que saltitando de árvore em árvore, soltam lindos gorjeios, enquanto escolhem o sítio mais propício para a construção dos seus ninhos, tal como noivos, radiantes de alegria, a preparar o seu novo lar. E lá ao fundo, sob a ponte que liga as duas margens daquele sonhador ribeiro, passa pressurosa aquela corrente de água cristalina, a sussurrar cantigas que só ela entende, dançando entre lisos penedos e vastos amieiros, formando ondas de espuma e soltando nuvens de oiro quando batida pelo Sol! E é neste ambiente contagiante, de pureza e suavidade, que o lavrador caminha até ao seu destino. Aí descarrega os carros numa só pilha, se a vessada ainda demora ou em vários montes se está próxima, e volta à povoação para fazer novo transporte. No meio de toda esta azáfama, há sempre uma palavra amiga, um dichote, uma graça, um sorriso, para com quem se cruza no caminho naquele constante vaivém. Por vezes o movimento é tão intenso que, ao cruzarem-se, têm dificuldade em fazê-lo. Quando cruzam é o carro vazio que se desvia, porque pode fazer a manobra com mais facilidade. Feitas duas caminhadas de manhãzinha, soltam as vacas a pastar nos campos, enquanto carregam os carros para fazerem mais duas viagens, por volta do meio dia. No resto da tarde semeiam batatas, carregam os carros para o dia seguinte e assim passam o mês de Abril. Muitas vezes, estes trabalhos são afectados pelas chuvas geladas e abundantes e pela neve que chega a cobrir campos e montanhas, como se fosse em Janeiro. Findo o mês de Abril, começam as vessadas. O estrume está quase todo nos campos e searas, se o tempo correu de feição, e agora resta-lhes apenas lavrar as terras. O ar fresco que em Abril ainda se fazia sentir vai desaparecendo com a chegada do mês de Maio e então toda a natureza parece em festa. A passarada canta agora com roais alegria; os cucos e as rolas perderam a vergonha e o receio com que iniciaram os seus cantos em princípios de Abril, formando um coro de gorjeios contínuo, durante todo o dia. As lameiras verdejantes começam então a cobrir-se de lindas flores que nascem espontâneas entre a erva espessa. As árvores apresentam os seus ramos mais enfeitados e as suas copas começam a fechar-se, onde as aves encontram o lugar ideal para construírem os seus ninhos, ocultos dos olhares inimigos. A corrente dos ribeiros é agora mais serena e menos arrogante, parecendo espraiar-se por entre campos e arvoredos, cantando o seu romântico glu, glu. Parece quedar-se, aqui e além, para contemplar aquela natureza em festa e ouvir as lindas cantigas que as lavadeiras cantam, enquanto, debruçadas sobre o liso lavadouro, lavam naquelas águas purificadoras a roupa que durante a semana se enchera de máculas nas tarefas do campo. Nos açudes a água já não tem força para os transpor e fica como que quieta a contemplar toda a beleza que a cerca, não querendo abandonar aquele paraíso, para se precipitar lá em baixo no Rio Douro, sujo e caudaloso. E é no meio de todo este conjunto de beleza e encanto que o lavrador vai rasgando a terra com o arado, ora cantando, ora assobiando, numa demonstração de pura felicidade. Parece-lhe que tudo gravita, esvoaça e se agita á sua volta, em louvor ao Divino Mestre, que criou toda a beleza da Natureza. Enquanto o lavrador rasga a terra com o arado puxado por vacas, uma grade vai-a cortando a aplanando, para que o milho, já espalhado, possa germinar e crescer, regado com o suor do lavrador e sob a protecção e bênção de Deus. Dantes eram as mulheres que metiam o milho, com minúsculas sacholitas, debruçadas sobre a terra já lavrada e cortada. Em cada campo, em cada seara, esta cena repete-se, confundindo-se a cada passo a voz do lavrador com o cantar triste do mocho que, empoleirado sobre um penedo, aprecia toda aquela azáfama, indiferente e feliz. Chegada a hora da merenda, estende-se uma toalha à sombra duma árvore ou dum penedo, se está calor, e nessa improvisada mesa come-se a refeição suculenta e nutritiva, feita à base de salpicão e presunto, que lhes há-de fornecer energias para vencerem mais um dia de trabalho. Acabada uma vessada, seguem para outra e assim passam cerca de duas semanas, numa labuta constante, porque a sementeira do milho não pode ser atrasada para bem produzir. Descansam apenas ao domingo para assistirem à Santa Missa e respeitarem o dia dedicado ao Senhor. Mas mesmo nesse dia, ainda vão dar uma volta pelas terras já semeadas, cobrindo algum grão que a grade tenha deixado descoberto antes que as aves o comam. Dantes formavam-se grupos de rapazes e raparigas que, munidos duma vara aguçada numa ponta, lá iam de vessada em vessada enterrar o milho que encontrassem descoberto. Terminado o trabalho, divertiam-se da melhor maneira, cantando e bailando ao som dum realejo e à sombra de frondosas árvores, em lameiras que lhes ofereciam um relvado mais macio que um tapete de veludo. Findas as vessadas, os lavradores têm um ligeiro período de descanso, enquanto o milho não atinge a altura de ser sachado. Esse período é aproveitado para continuarem as cavadas, que foram interrompidas com as sementeiras e também para deitarem mato nos currais do gado, que ficaram vazios com a tiragem do estrume. Geralmente durante as vessadas e no fim delas, caem fortes chuvadas, provenientes de trovoadas, que se tornam benéficas na fertilização de campos e lameiras. O trabalho das vacas também é interrompido com o terminar das vessadas. Agora encontram erva boa e em abundância por toda a parte, desde as lameiras e cabeços até aos píncaros da montanha. Entretanto o mês de Junho começa e a vida do lavrador continua no mesmo ritmo de ligeiro descanso, à espera que chegue a altura do sacho do milho. A natureza que em Maio se engalanara com as mais lindas flores no fundo dos vales, tornou-se agora um paraíso até ao cima da montanha. Se é verdade que, em Portugal, o mês de Maio é considerado o mês das flores, naquela terra, porém, não goza de tal privilégio, porque só em Junho a natureza veste o seu mais lindo manto de verdura e flores. É um regalo subir ao alto da serra no mês de Junho para ficar extasiado a contemplar aquela policromia maravilhosa! Olhando em redor, vêem-se ali as flores brancas e perfumadas das giestas; além o amarelo das carquejas e dos sargaços; acolá o azul acizentado e aromático das urzes; e mais além o ondular dos centeios, agitados por uma brisa suave que parece cantar entre a ramagem do arvoredo. A serra com este manto de beleza, assemelha-se a um tapete imenso, onde se concentraram as mais lindas cores do Universo. Em meados de Junho já o milho está em altura de ser sachado. A partir daí, nunca mais o lavrador tem descanso ou folga até ao fim das colheitas. Os afazeres sucedem-se a um ritmo tal, que tem de redobrar esforços para que o serviço não atrase. Mas sempre possuído duma alegria que lhe é peculiar, lá vai vencendo todo aquele esgotante trabalho, de sorriso nos lábios e felicidade na alma, junto da família que adora, na terra que tanto ama! Nas noites de S. João e S. Pedro, os rapazes não se deitam. Seguindo uma velha tradição, aliás como acontece noutras terras do país, reúnem quantos carros de vacas existem na freguesia para atravessarem numa rua central que dê acesso à fonte ou à Igreja. Furtam vasos de craveiros e manjericos que as raparigas usam nas janelas e vão-nos colocar sobre o muro do adro ou nas cornigens da torre. Também fazem arcos enfeitados com verdes e flores nas ruas que circundam a Igreja. No meio destas brincadeiras, há sempre quem abuse e pratique actos pouco recomendáveis, pelo que algumas vezes têm sido chamados a prestar contas às autoridades. Findo o mês de Junho está o sacho do
milho quase feito, mas logo surge a renda e a rega de batatais. Depois vem a colheita do
feno, serviço difícil e moroso. Esta tarefa da colheita do feno, começa em meados de
Julho, altura em que as lameiras mais secas, guardadas em Março, já se apresentam de
erva madura. É Mas se cortar a erva é um trabalho duro,
não é menos custoso juntá-la, carregá-la e metê-la no palheiro. É assim que o
lavrador da Gralheira trabalha durante os meses
Terminadas as ceifas e concluídos os
trabalhos da colheita do feno, transportam o centeio das searas para a eira, onde fazem as
medas. Feito o transporte, seguem-se as malhas em debulhadoras mecânicas. Noutros tempos
eram feitas com manguais, que exigiam do homem um esforço enorme. Formavam Em fins de Agosto faz-se também a colheita da batata que normalmente produz bem naquela terra fria. Como a colheita do milho ainda tarda, vão até às vindimas do Alto Douro, onde se demoram cerca de quinze dias. Trabalho duro e pouco compensador, sobretudo para os homens, que passam os dias de cesto às costas, subindo e descendo ladeiras c socalcos. Mas é um trabalho alegre, onde cantam e dançam ao som do bombo e concertina. Hoje fazem a viagem de carro mas dantes iam a pé e ainda carregados com as broas de pão de milho. Quando regressavam, entravam na freguesia a cantar cantigas como esta: Fui ao Douro à vindima, Regressados á aldeia, entregam-se á colheita do milho, onde os que ficaram já trabalham com afã. É um serviço feito, normalmente, no mês de Outubro, sem grandes canseiras nem pressas, porque têm de esperar que o Sol, de raios já muito oblíquos, o vá secando na eira ou no sequeiro. As desfolhadas são sempre alegres e divertidas, sobretudo quando juntam muita gente. Já não são como antigamente em que se cantavam lindas cantigas, só interrompidas quando surgia o milho rei. Então tudo se alvoroçava e suspendia o trabalho, para felicitar o feliz contemplado, que de espiga encarnada na mão, abraçava um a um, todos os componentes do grupo, Fossem velhos ou novos. Hoje ainda se repetem de vez em quando, estes usos e costumes, mas fazem-no com menos animação e entusiasmo. Desfolhadas as espigas são lançadas num cesto colocado ao centro da roda, sendo depois despejadas na eira, onde ficam a secar dois dias, para em seguida serem debulhadas com paus, manguais ou debulhadoras mecânicas. Separado o grão do casulo, este é lançado fora ou guardado nos palheiros, para ser utilizado nas fogueiras das barrelas que dantes faziam, mas que hoje já pouco usam. O grão volta à eira em mais dois dias de Sol. Para que não apanhe humidade, colocam-no sobre mantas estendidas em forte camada de palha de centeio bem seca. Passados esses dois dias, é erguido para o limpar de qualquer lixo ou poeira, medido, metido em sacos e transportado para as grandes caixas de madeira, onde fica depositado até ir ao moinho para cozer a fornada e assim servir de principal alimento a toda a família. Finda a tarefa das colheitas do milho, terminam, praticamente, os trabalhos do campo naquela aldeia, seguindo-se depois os afazeres da época invernosa. Caídas as primeiras chuvas do Outono, as lameiras tornam-se verdes e cobrem-se de flores campestres. Á volta do focinho das vacas, que retouçam nas lameiras, juntam-se alvéolas em busca de insectos. Os moços, guardadores das vacas, procuram aproximar-se das alvéolas na intenção de as apanharem. Mas elas muito lestas, sempre alerta, muito vivas, não se deixam surpreender. Eles ficam intrigados com a preferência que elas dão à companhia das vacas. E foi por isso que, num dia de Outono, dois rapazes resolveram disfarçar-se de bezerros, para que as alvéolas os confundissem e viessem para junto deles. Despiram a roupa e colocaram um rabo de casca de salgueiro. Assim disfarçados, aproximaram-se duma vaca que trazia à sua volta muitas aves. Mas a vaca estranhou o disfarce e deu-lhes semelhante corrida que os obrigou a saltar a parede que circundava a lameira. Um ao saltar, ficou preso pelo rabo que se estalara entre as pedras da parede, enquanto a vaca, ameaçadora, quase Ihe tocava com a ponta dos chifres. Se o rabo não rebenta ficava-lhe caro o disfarce.
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