RIGORES DO INVERNO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

O Inverno na Gralheira é rigoroso e difícil de suportar. Quem está
habituado não sente tanto os seus efeitos, mas quem por acaso ali passa um inverno
desprevenido parece que se lhe gelam a carne e os ossos. O Inverno ali começa
praticamente em Setembro. Ainda as árvores estão cobertas de folhas e os campos de
milheirais e já a geada aparece e algumas vezes cai neve. Não vai longe o ano em que
nevou no dia 26 de Setembro. Chegado o mês de Outubro, depois de fazerem a colheita do
milho, muitas vezes prejudicada pelo mau tempo, os lavradores podem dizer que têm os
trabalhos do campo terminados. Dai em diante apenas cuidam do gado, preparam açudes e
abrem regos nas lameiras para que a água dos ribeiros e regatos possa circular durante o
Inverno e Primavera, a fim de fertilizar a terra para que produza muita e boa erva. Se o
tempo permite, ainda sacham os centeios, mas nem sempre o rigor do Inverno lho consente.
Colhem várias carradas de lenha para que esta nunca falte na lareira, onde arde a
fogueira que os aquece e conforta. Depois dedicam-se quase só ao trato dos animais, sua
principal fonte de receita.
>No mês de Dezembro matam os suínos e fazem as sarrabulhadas, onde
reúnem a família mais chegada. Dantes estava também presente a pessoa que guardava o
gado miúdo, ainda que fosse estranha à família, porque, além do pagamento de meio
alqueire de cereal por cada cabeça que guardava, tinha ainda direito a participar na
sarrabulhada. A carne de porco ali preparada é muito saborosa e foi devido aos presuntos
da Gralheira e arredores, que se espalhou por todo o País a fama de que gozam os
presuntos de Lamego. Fazem salpicões do lombo do porco, depois de mergulhado em vinho e
alho durante três semanas, o que lhes dá um paladar ímpar. Dantes, por alturas do
Natal, muitos homens, não tendo que fazer na sua terra, iam trabalhar em azenhas ou
lagares de azeite, que funcionavam noutras localidades das zonas ribeirinhas, a fim de
angariarem o indispensável azeite para consumo do lar, já que ali não há azeitona.
Hoje já são poucos os que vão trabalhar nas azenhas. No Carnaval
comem boa orelheira, guardada a propósito para aquele dia. Oferecem sempre um bocado da
cabeça do porco ou salpicões ao Santo António, patrono dos animais, para que lhes
proteja os seus gados. Essas ofertas são leiloadas no Domingo de Carnaval ou Domingo
Gordo normalmente no adro da Igreja, ao fim da missa. Como as ofertas que vão a leilão
são muito pretendidas, o seu custo é sempre bastante elevado. Embora o lavrador pouco
trabalhe no campo durante o Inverno, a sua vida não é de modo algum suave. Quer faça
Sol ou chuva, tem que guardar os gados nas lameiras ou nos montes, onde vão pastar. E
quanto frio e molhadelas o pastor apanha nesses dias! Se está neve, o gado não pode sair
do curral, porque as pastagens ficam submersas. Então, têm que o alimentar na loja, à
base de feno, até que a neve derreta. As vezes, após ter caído uma forte camada de
neve, as nuvens rasgam-se e o Sol aparece mais brilhante que nunca, fazendo espelho
naquele enorme manto de brancura. Durante o dia, por acção do calor solar, a neve vai
derretendo e dos beirais começam a cair abundantes gotas de água. Mas logo que o Sol
desaparece essas gotas transformam-se em gelo, devido ao abaixamento da temperatura.
Quantas vezes, de madrugada, ao abrir a porta de casa, a gente depara
com umas torcidas de gelo «estalactites» ao longo das paredes do telhado até à rua.
Nas árvores é maravilhoso o panorama! Com os ramos cobertas de gelo e batidos pelo Sol,
dão a ideia duma árvore de cristal. Quantas vezes era preciso partir o gelo do jarro que
continha a água para se poderem lavar. Hoje, com a água canalizada, esta chega a gelar
nos canos. Mas se a neve é assim tão fria e faz sofrer tanto aquela gente, não é menos
verdade que lhe oferece oportunidades e vantagens que a levam a desejar, muitas vezes, o
surgimento duma camada de neve. Sobretudo os caçadores de coelhos e lebres vêem a sua
tarefa facilitada e rendosa, embora seja proibido caçar em montes cobertos de neve.
Mas pisando a lei e correndo o risco de serem punidos, não resistem à
tentação e, ao romper do dia, lá vão eles monte acima sulcando a neve, com um frio de
gelar os ossos. Os coelhos e lebres que durante a noite foram obrigados pela fome a
procurar alimento. saindo dos seus esconderijos, deixaram as suas pegadas bem marcadas na
neve, que os atraiçoa ao ponto do caçador lhe restar apenas segui-las até encontrar a
caça no seu abrigo. Por isso, é que, quando surge uma camada de neve jeitosa, não são
só os caçadores habituais que vão à caça, mas também quase todos os homens válidos
da freguesia. Consideram neve jeitosa para o exercício da caça quando neva até às
quatro ou cinco horas da madrugada, porque a neve caída até essa hora, cobriu as pegadas
feitas até essa altura, deixando a descoberto só as de regresso ao esconderijo. Para se
furtarem à fiscalização, levantam-se muito cedo e por volta do meio dia já estão de
regresso, com a caçada feita, sem serem incomodados pelos fiscais que, para chegarem ali,
de qualquer sede dos concelhos mais próximos, demoram sempre mais de quatro horas a pé,
já que de carro não é possível, por as estradas ficarem bloqueadas.
A propósito dessas caçadas na neve, vou contar um episódio bastante
dramático ocorrido há dezenas de anos, mas que felizmente terminou bem. Como disse, há
certos indivíduos tão viciados na caça que, quando surge uma camada de neve, nada os
detém, mesmo sabendo que correm graves riscos. Entre esses estava o tio Alberto, homem
honrado, de carácter recto, que eu tive a honra de conhecer, mas que Deus já chamou ao
eterno descanso. Não havia neve que não pisasse na faina da caça, como não havia
recanto, em toda a serra; que não conhecesse. Na madrugada de um domingo de Dezembro,
deparouse-lhe a serra toda branca como um lençol. Naquela terra, tanto por devoção como
por tradição, ninguém falta à missa ao domingo.
O padre daquela paróquia, tal como ainda hoje acontece, fazia também
serviço na Panchorra. Para não haver aborrecimentos, celebrava a 1.ª missa dominical
alternadamente, ora numa ora noutra freguesia. Naquele domingo a missa foi celebrada
primeiro na Panchorra. O tio Alberto não queria faltar à missa, pois era homem fervoroso
e católico dos melhores. Mas era superior à sua paciência ter de adiar, até tão
tarde, a sua partida para a caça. Resolveu dar umas voltas pelas proximidades da
povoação e, quando chegasse a hora da missa, viria assistir a ela e no fim voltaria à
caçada. Se assim pensou melhor o fez. Comeu um bocado de broa acompanhado dum golo de
aguardente e lá foi ele sulcando a neve, acompanhado de cães e furão. Mas chegada a
hora da missa, o tio Alberto não compareceu.
Chegou a hora do almoço da merenda, e nada. Ninguém o vira. Os
caçadores já todos tinham regressado e nenhum dava sinais dele. A preocupação que
reinava nos membros da família transformou-se em desespero e espalhou-se por toda a gente
da aldeia quando, ao cair da noite, alastrou a notícia de que o tio Alberto não tinha
regressado ao lar. Tanto bastou para que todos se reunissem em torno da família
angustiada e sentissem o coração oprimido por saberem que um filho daquela terra, um seu
vizinho, estava em perigo de vida ou até, talvez, já morto. Os gritos aflitivos da
família, faziam eco nos corações daquela boa gente, como punhais a desfazer-lhe a alma!
Perante tal situação, não hesitaram um momento sequer. Os homens válidos, acompanhados
de cães e cornetas, lançaram-se monte acima, não receando aquela noite gélida e
terrível. No meio da escuridão surgia sempre aquele manto de neve a barrar-lhes o
caminho, tropeçando aqui caindo além, e a gelar-lhes a carne e os ossos. A brancura, que
costuma ser símbolo de paz e amor, naquela noite parecia ter as garras da morte mais
cruel, querendo arrebatar a vida ao ente querido. Ninguém ceou na aldeia, porque todos
viviam as alegrias ou tristezas mutuamente e naquela noite era a tristeza e a angústia
que pairava sobre os lares da freguesia. Aquela boa gente era capaz de dar a própria vida
pelo vizinho e naquela ocasião, mais do que nunca, sentia o infortúnio do seu
semelhante.
Mas, enquanto na povoação eram vividas horas trágicas de desespero e
incerteza, na serra os homens de mãos dadas para se não perderem, envolvidos pelas
trevas e enterrados em neve até à cintura, continuavam as buscas, ora chamando ora
tocando cornetas, sempre na perspectiva de obterem resposta da pessoa que ansiosamente
procuravam. Quantas vezes as suas vozes, fazendo eco nos outeiros, lhes pareceram ser a
resposta ansiada. Era meia noite e já os homens se sentiam cansados, desiludidos e
descrentes, ao atravessar a parte mais alta da serra, a cambar para o concelho de Castro
Daire. A ideia de que o homem estava morto, começou a bailar-lhes na mente. Pareciam
infrutíferas mais pesquisas naquele enorme manto de neve, onde não encontravam nem uma
peugada nem um vestígio, que os pudesse conduzir junto ao homem perdido. Mas quando estes
lúgubres pensamentos começavam a ganhar forma de certeza, eis que se ouve qualquer coisa
parecida com o ladrar dum cão, após terem tocado mais uma vez as cornetas. Suspenderam a
respiração para poderem certificar-se bem do que tinham ouvido.
De repente pareceu-lhes um sonho, uma visão. Mas agarrados ao que
parecia mentira, voltaram a tocar freneticamente as cornetas. Ouviram de novo o ladrar de
cães, mas desta vez mais nítido. Tinham a certeza de que os cães que ladravam estavam
perto e alguém estaria com eles. Os cães que os acompanhavam respondiam ao ladrar dos
outros, que cada vez pareciam mais próximos. Começaram a pensar que seriam os do tio
Alberto, mas talvez ele já estivesse morto. Esta ideia aterrava-os. Guiados pelos cães
que corriam ao encontro das que respondiam do meio da escuridão, foram encontrar o homem
encostado a um penedo, num recanto onde o vento varrera a neve, carregado de coelhos e
acompanhado pelos fieis cães que nunca o abandonaram. Quando os homens da caravana de
busca chegaram junto dele e viram que estava vivo. exultaram de alegria e felicidade!
Indescritivel aquela cena! Não há adjectivos que possam exprimir o que se passou nos
corações daqueles homens já cansados e que momentos antes julgavam tudo perdido.
Parecia-lhes ter passado da incerteza a um maravilhoso sonho! Mas ele ali estava vivo
perante os olhos rasos de lágrimas de felicidade dos que tão ansiosamente o procuraram.
Queria falar mas não podia, por acção da fome e do frio que o tinham quase morto.
Imediatamente lhe aplicaram fricções com álcool e lhe deram vários
estimulantes a beber. Entretanto, dois homens partiram, o mais rápido possível, em
direcção à aldeia, levar a boa nova e transformar em alegria o que era terrível
angústia! Quantas vezes aquelas mulheres, crianças e velhos, que ficaram em casa por
não terem forças capazes de vencer a resistência da neve e do frio, lhes pareceu ouvir
passos que não existiam, devido à ânsia que sentiam de verem regressar o homem com
vida. Reunidos em casa do tio Alberto, procuravam a todo o custo dar um pouco de ânimo e
consolação, àquela família desolada! Quantas promessas fizeram à Virgem, para que
lhes trouxesse vivo o homem que tanto amavam! Depois de longas horas de angústia,
penitência e oração, parecia-lhes já tudo perdido e um certo desespero começava a
fermentar no íntimo dos mais pessimistas.
A certa altura ouviram qualquer coisa parecida com os passos de alguém
que caminhava apressado. Todos se agitaram e correram à porta na expectativa de verem o
que se passava. Quando os dois mensageiros comunicaram que o homem fora encontrado vivo, a
emoção foi impressionante! Nos olhos daquela gente brilhavam agora lágrimas de alegria
e das suas boca saiam suspiros de alívio e orações em acção de graças à Mãe do
Céu, por ter salvo aquele filho de morte horrível. Outros corriam à Igreja a acender
velas, em cumprimento de promessas feitas, murmurando baixinho orações fervorosas.
Enquanto na aldeia se exultava de alegria, os homens da caravana desciam a serra a caminho
do povoado, quase exaustos, mas consoladoramente felizes por trazerem em sua companhia o
homem que tão ansiosamente procuraram. Dizem que o tio Alberto, dominado pela fome que o
atormentava, já tinha esfolado um coelho para comer cru. Só de madrugada chegaram à
aldeia, onde foram recebidos triunfalmente. As cenas de emoção e arrebatada alegria
então vividas, não as consigo descrever. Apenas direi que, certamente, as lágrimas de
alegria se misturaram com os beijos e abraços naquela gente doida de contentamento.
Quando os componentes da caravana chegaram ao povoado, vinham quase
tão cansados como o homem que procuraram, tal foi o esforço que tiveram de fazer para
vencer o frio e a resistência da neve. Mas sentiam-se felizes pela boa acção praticada,
pelo dever cumprido. Logo que o tio Alberto se recompôs e se viu de novo no seu lar,
rodeado da família, vizinhos e amigos, prometeu, a si mesmo, nunca mais sair sozinho, em
dias de neve. Contava que não voltara para assistir à missa como tinha prometido, porque
fora atraído pela muita caça que encontrara e ao seguir as peugadas dos coelhos, fora
parar a sítios que não reconhecia e quando quis regressar não soube a direcção que
devia seguir para voltar à aldeia. Embora fosse um homem bem conhecedor de todos os
cantos e recantos da serra, em dias de neve é sempre difícil a orientação, porque os
montes e vales apresentam uma fisionomia completamente diferente do habitual e foi por
isso que ele se perdeu. Contava depois que, naquelas horas trágicas em que lhe parecia
ver a morte aproximar-se, se lembrava de ter faltado à missa, naquele domingo, indo assim
morrer com aquele pecado na sua alma. Daí em diante, nunca mais saíu ao domingo sem ter
assistido à Santa Missa.
CAMINHANDO
SOBRE A NEVE
Como já ficou dito, muitos homens da Gralheira iam
- e alguns ainda vão - durante o Inverno trabalhar em lagares de azeite nas freguesias
mais ribeirinhas. Esses lagares chamam-se azenhas e os homens que nelas trabalham têm o
nome de azenheiros. O Sr. Manuel era um desses azenheiros e há muitos anos que trabalhava
numa da senhora D. Maria, da Quinta do Lavadouro, em Vilar de Barrô, concelho de Resende.
Porque era homem sério e honesto, gozava da estima e consideração não só da
proprietária da azenha, mas também dos fregueses que depositavam nele a maior
confiança. Por isso a clientela era numerosa, dando origem a que aquele lagar de azeite
se mantivesse em funcionamento mais tempo que qualquer outro.
Quem costumava acompanhar o Sr. Manuel, como seu
ajudante, era o seu sobrinho Ernesto. Mas como o funcionamento era prolongado e o serviço
extenuante, eram frequentemente substituídos. No ano de 1956 fui substituir o Ernesto que
se encontrava adoentado. Estávamos já em Fevereiro, faltando apenas cerca de vinte dias
para terminar a safra daquele ano. O bom tempo, que se fizera sentir durante quase todo o
mês de Fevereiro, deu lugar à tempestade quando este mês findava. Faltavam apenas dois
dias para terminar o trabalho quando um forte nevão cobriu montes e vales, tocando quase
as margens do Douro.
Chegado o dia da partida não foi possível viajar
devido ao mau tempo. O almocreve que devia chegar de véspera com duas mulas para
transportar o azeite ganho, também não compareceu. Resolvemos então deixar as latas com
o azeite arrumadas em casa da D. Maria e seguirmos viagem de camioneta para Lamego, onde
pensávamos tomar outra que nos levasse a Bigorne e daí a pé para a Gralheira, que já
era mais perto. Quando chegámos a Lamego já a neve tinha mais de vinte centímetros e
para os lados de Bigorne talvez mais de meio metro. Por isso a camioneta de Castro Daire,
que nos devia levar a Bigorne, estava imobilizada em Lamego. Voltámos a Barrô na
camioneta da tarde.
Mas a neve que continuava a cair bloqueava já a
estrada, de maneira que os carros ligeiros não podiam transitar e a camioneta fazia-o com
extrema dificuldade, não só pela neve acumulada, mas também pelas árvores caídas, que
a obstruíam por completo e que cantoneiros, num esforço heróico, iam afastando do
centro da via. Agora já não eram só as montanhas cobertas de neve, mas sim tudo quanto
se avistava do alto dos montes até à beira do Rio Douro. Devido ao atraso da camioneta,
causado pela neve, chegámos a Barrô já noite cerrada. Ali permanecemos mais dois dias,
aguardando que o bom tempo voltasse e a neve derretesse. Entretanto as nuvens rasgaram-se
e o Sol surgiu quente e apetitoso. A neve caída nas redondezas; depressa desapareceu. Mas
lá no alto de S. Cristóvão mantinha-se indiferente ao calor solar, continuando a cobrir
a serra com o seu manto alvescente.
Telefonámos para Lamego em busca de informações
sobre o trânsito na estrada de Bigorne, mas a resposta foi que nem daí por oito dias as
camionetas poderiam passar. O desejo de regressar à Gralheira era enorme e ainda mais
porque se aproximava o domingo. Procurei convencer o Sr. Manuel a fazermos a viagem a pé
pela serra, sugerindo-lhe que se o não conseguíssemos num só dia, ficaríamos em S.
Martinho de Paus ou Felgueiras e, no dia seguinte, retomaríamos a viagem. A princípio,
não aceitou a proposta, lembrando uma série de riscos e perigos que teríamos de
enfrentar. Eu não os ignorava, mas procurava esquecê-los para não desistir dos planos
que projectara. Conhecia bem quanto perigoso era atravessar a serra naquelas
circunstâncias, mas o desejo de regressar à minha terra era superior a tudo isso. Voltei
a insistir, procurando convencer-lhe, mas ele mostrava-se pouco disposto a enfrentar
semelhante aventura.
Então empreguei todo o meu poder de persuasão para
o demover, fazendo-lhe crer que tão cedo não teríamos transporte, que o tempo podia
piorar e que as nossas famílias estavam em cuidados por não terem notícias nossas.
Perante tais argumentos, acabou por concordar. mas propôs que ficaríamos em S. Martinho
e depois ver-se-ia o que a coisa dava. Aceitei a proposta e fomos almoçar a casa do
senhor Adérito que nos ofereceu um suculento e lauto almoço. Ao meio dia de sábado bem
almoçados e providos de garrafas de aguardente, vinho, figos e salpicões, partimos em
direcção à Gralheira. O Sr. Manuel calçava botas, mas eu tive de fazer a viagem de
tamancos, porque o almocreve que devia trazer-me as botas, não pôde comparecer. Mas,
mesmo assim, andasse ele, que por mim não havia atraso, movido que estava pelo desejo de
vencer a viagem e numa altura em que contava vinte e um anos de idade. Tal foi o andamento
imprimido, que às treze horas estávamos em S. Martinho de Paus, percorrendo tal
distância numa hora, quando normalmente gastávamos duas.
É que, embora ele tencionasse ficar em S. Martinho
ou Felgueiras, o meu objectivo era chegar à Gralheira nesse dia custasse o que custasse.
Assim, como ainda era cedo, lá o convenci, novamente, a seguir viagem e dentro de pouco
tempo estávamos em terrenos cobertos de neve. Devido ao Sol quente que se fazia sentir, a
neve derretia rapidamente, encharcando o caminho que tínhamos de trilhar. Quando me vi
enterrado até aos joelhos naquela neve gelada senti uns arrepios que quase me fizeram
desanimar e desistir daquela viagem, que me parecia impossível continuar. Mas para não
quebrar o ânimo do Sr. Manuel, procurava fazer-lhe crer que tudo aquilo era fácil.
Depois de passarmos Moumiz, num planalto onde a neve por acção do vento se tinha
acumulado em grande quantidade, senti bem perto o desânimo e quase me arrependi de não
ter escutado os seus conselhos. Enterrado em neve até à cintura, quantas vezes tive de
arrancar os tamancos do fundo dos sulcos, onde ficavam presos e prosseguir a viagem em
meias e de tamancos na mão. Desse planalto até à capelinha de S. Cristóvão demorámos
mais de duas horas, tais foram os obstáculos que a neve nos levantou e que tivemos de
vencer.
Chegados ao alto de S. Cristóvão, sentámo-nos
junto da capelinha, onde o vento tinha varrido a neve e aí comemos, bebemos e
descansámos alguns minutos, recuperando energias perdidas. Rezámos algumas preces ao
santo daquela capelinha para que nos ajudasse a concluir a viagem, que tão dura se
apresentava. Terminada a reza, pusemo-nos de novo a caminho. Dali em diante já não havia
subidas, mas a neve era muito mais volumosa, embora endurecida pelo arrefecimento
nocturno. Leve e ágil, eu passava sem que a neve abatesse, mas ele, bastante pesado,
enterrava-se até à cintura. De vez em quando, parávamos para comer e beber. A certa
altura, chegámos junto dum regato, que nesse dia estava submerso pela neve e ao
atravessá-lo esta abateu e o Sr. Manuel enfiou-se nas águas geladas dum açude, ficando
todo molhado. Dali em diante, tivemos muitas vezes de rastejar ou rolar sobre a neve,
devido à sua altura.
Quase ao pôr-do-Sol estávamos junto dos moinhos da
Talhada, onde encontrámos dois moleiros. Ao vê-los sentimos um alívio enorme, porque a
noite aproximava-se e as forças de que dispúnhamos já não eram animadoras. Com a
presença daqueles homens desvaneceram-se todos os receios e ficámos com a certeza de que
a nossa aventura ia terminar bem. Dos moinhos até à povoação da Talhada fizemos a
viagem na companhia dos dois moleiros que, segundo disseram, já observavam a nossa
odisseia há algum tempo, prontos a intervir se fosse necessário.
Como o carreiro estava trilhado, dos moinhos até à
Talhada, depressa chegámos. Dali à Panchorra ainda encontrámos algumas dificuldades por
não haver caminho pisado. Da Panchorra até à Gralheira foi fácil, porque esse caminho
estava sempre trilhado por pessoas que iam à Gralheira abastecer-se de géneros
alimentícios ou de outros produtos de que careciam, por na Panchorra, nessa época, não
haver estabelecimentos comerciais.
Ao anoitecer chegámos à entrada da Gralheira onde
encontrámos o Ernesto que, preocupado com a nossa ausência e pressentindo que
regressaríamos nesse dia, ali nos esperava, na ânsia de nos ver chegar. Foi com grande
alegria e emoção que nos abraçámos. Em breves minutos estava de volta à minha casa
paterna, rodeado do carinho de familiares e amigos, graças à minha persistência e à
protecção de Deus.
O CLIMA
E OS TUBERCULOSOS
Situada a cerca de mil e cem metros de altitude, a
Gralheira tem um clima gélido no Inverno, mas muito bom e saudável no Verão. É
reconfortante aspirar aquele ar puro, perfumado com o mais belo aroma das flores
campestres, quando nas manhãs de Primavera e Verão, damos um passeio através dos montes
e vales, por entre giestais floridos e centeios ondulantes. Por mais calor que faça,
nunca o termómetro regista temperaturas superiores a 26 graus à sombra, onde corre
sempre uma brisa suave e tonificante. Foi por isso que noutros tempos, antes de criados os
modernos sanatórios que hoje existem em Portugal, os tuberculosos escolhiam aquela terra
para cura dos seus males.
Centenas de pessoas idas de terras distantes,
sobretudo das grandes cidades, ali acorriam na derradeira esperança de encontrarem
naquele ar puro o antídoto capaz de combater aquela terrível doença. Armavam tendas e
barracas à sombra dos penedos da Costa Lapa, sobranceiros à povoação e assim passavam
o Verão, aproveitando os benefícios daquele clima que lhes atenuava o sofrimento e a
alguns restituía a saúde e a vontade de viver. Chegaram a construir algumas casas junto
dos penedos, umas em pedra e outras em madeira. Hoje apenas uma existe, mas quase em
ruinas. Foi mandada construir por um tal Sr. Jorge Pereira e mais tarde comprada pelo Sr.
Moisés, já falecido. Hoje é pertença de seus filhos.
Outra casa foi mandada construir pelo Sr. Dr.
Ramalho, médico de Resende, no lado poente da Costa Lapa, que, sendo também vítima da
tuberculose, ali encontrou alivio para si e sua família. Essa casa, feita em madeira e
coberta de zinco, foi destruída, segundo dizem, pelo exército quando esteve aquartelado
naquela freguesia durante alguns meses, depois da implantação da República. Conta
aquela gente mais idosa que certo dia foram subitamente alertados por rajadas de
metralhadoras, que disparavam no cima da serra. Habituados ao sossego e tranquilidade dos
montes, onde apenas o cantar dos pássaros ou um tiro de arma caçadeira quebrava de vez
em quando o silêncio reinante, ficaram apavorados com aqueles disparos de metralhadoras.
Nunca tinham ouvido na sua terra coisa semelhante àquilo que lhes parecia ser o fim do
mundo.
Souberam depois que aqueles tiros tinham sido
disparados por quatro indivíduos que, defendendo a causa monárquica, procuravam combater
os republicanos e reimplantar a monarquia derrubada em 1910. Esses quatro indivíduos
encontravam-se escondidos entre os penedos do Maceirão e abriram fogo sobre um pelotão
de cavalaria do exército inimigo que lhes surgiu do lado de Penacova, obrigando-os a uma
fuga desordenada, porque certamente pensaram que tinham pela frente uma grande força
hostil. Mal os republicanos se puseram em fuga, logo os monárquicos fugiram em sentido
contrário receando qualquer reacção poderosa do inimigo, da qual não se poderiam
defender por serem apenas quatro elementos. Ostentando a bandeira monárquica, debandaram
serra abaixo em direcção à Gralheira, mas nem aí pararam. Seguindo sempre, foram até
Mosteirô onde dinamitaram a ponte sobre o Rio Douro, destruindo-a para dificultar ou
impedir a perseguição do inimigo que previam iminente.
Decorreram alguns dias sobre estes episódios sem
que se notasse qualquer reacção por parte dos republicanos. Mas não tardou muito que um
regimento, vindo de Viseu, se instalasse durante alguns meses na Gralheira. Assentaram
arraiais na Eira do Púlpado, mas como a cozinha de campanha não funcionou
satisfatoriamente, distribuíram os componentes daquele exército pelas casas da
povoação, sendo os locatários obrigados a dar-lhes alimentação e alojamento, mediante
irrisória mensalidade paga pelo regimento. Enquanto ali permaneceram, montaram um
serviço de vigilância em redor da freguesia para não serem surpreendidos pelos ataques
do inimigo. Os postos de sentinela foram montados nos pontos mais altos, como o Outeirão,
Penedo da Saúde e outros, tendo como casa da guarda a tal casa de madeira e zinco mandada
construir pelo Sr. Dr. Ramalho, na Costa Lapa.
Era nessa cabana que os soldados tinham de repousar
e dormir, quando em serviço de guarda não estavam nos postos de sentinela. Mas aquela
casa, que fora construída exclusivamente para ser habitada durante o Verão, não reunia
condições de vivência no Inverno. O local é desabrido e o frio facilmente atravessava
as suas frágeis paredes. Os militares que a ocuparam, sentiam-no na carne e nos ossos.
Para combater o frio não podiam usar as espingardas. Tinham de fazer fogueiras
constantemente e, como lenha seca não havia, queimaram primeiro o soalho e depois as
ripas que faziam parte da parede, de modo que, quando os soldados partiram, a casa estava
destruída. Esta, que fora construída para desempenhar as funções de sanatório, acabou
por ser improvisada em casa da guarda de um regimento. Da permanência desses soldados na
Gralheira veio a resultar o casamento entre um dos corneteiros e uma rapariga dali. Dessa
união nasceu um filho a que puseram o nome de Fernandes e que mais tarde veio a ser
jogador de futebol e capitão da equipa do Benfica.
Junto do sítio
onde se ergueu a referida casa existe um grande penedo, em forma de vaso, a que, devido ao
local onde se situa e à sua deliciosa sombra onde muitas pessoas encontraram alivio para
os seus males, foi dado o nome de «Penedo da Saúde», como ainda hoje é vulgarmente
conhecida. Já o Sr. Dr. Ramalho lhe dava esse nome num livro que escreveu há bastantes
anos, onde fazia as melhores referências a seu respeito, baseando-se nas horas de repouso
que passou à sua volta e que lhe atenuaram os efeitos da terrível tuberculose. Houve
ainda outro edifício, situado nas Murganheiras, bastante longe da povoação e que foi
mandado construir por alguém para servir de sanatório. Era um prédio de três andares,
com varandas, muito moderno para aquela terra e aquela época. Era de parede singela, bem
alinhada, mas bastante estreita, permitindo que a humidade se infiltrasse no seu interior,
com relativa facilidade. Para evitarem que tal acontecesse, pintaram o prédio na parte
exterior com tinta preta, mas o resultado foi pouco animador, porque naquela terra o
Inverno é demasiado duro para permitir certos luxos.
Devido a essa pintura, o edifício erguia-se no meio
do arvoredo que o circundava como um fantasma vestido de luto. Por isso passou a ser
conhecido pelo nome de «Casa Negra», que fazia por os cabelos em pé às crianças
quando lhes falavam dessa casa, já desabitada, onde diziam morar o demónio, negro como
ela. Durante a primeira República essa casa foi habitada no Verão, por gente de elevada
classe social e, mesmo depois da Revolução de 1926, alguns elementos do Partido
Democrático ali encontraram refúgio, como engenheiro Men Verdeal. Mais tarde foi
comprada pelo Carriço, que veio depois a residir nas Caldas de Aregos onde faleceu. A
casa das Murganheiras passou então para os descendentes do Carriço, que a desmantelaram,
restando-lhe agora apenas os alicerces.
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