As Sardinheiras De Boassas
Vai longe o tempo em que à Gralheira chegava, pela manhãzinha, o peixe fresquinho e apetitoso. Vindo de Matosinhos, primeiro em barcos rabelos Rio Douro acima, depois, em comboios pela via férrea. O peixe chegava a Porto Antigo, com os primeiros alvores da manhã. Aí, esperaram-no as sardinheiras de Boassas, que logo enchiam as canastras e se punham a caminho, de povoado em povoado. Enquanto umas faziam a sua venda na zona ribeirinha, outras seguiam montanha acima, em direcção às aldeias mais distantes da serra. Estradas não havia, só a pé ou a cavalo ali podiam chegar. A Gralheira era a povoação mais distante e mais serrana, sendo, por essa razão, a mais difícil de atingir. Mas, mesmo assim. a saborosa sardinha chegava à Gralheira logo de manhã, graças ao esforço heróico daquelas valentes e corajosas mulheres. De todas a que mais se destacou foi a Srª. Laurinda, já falecida, para quem a gente da Gralheira tem uma dívida de gratidão e uma grande amizade. Umas vezes acompanhada pelo marido, outras pelos filhos ainda pequenos e as vezes sozinha. aquela senhora quase todos os dias visitava a Gralheira. Eram quatro horas de viagem bem puxadas para cada lado, por caminhos íngremes e pedregosos, onde o equilíbrio da canastra era difícil. E quantas vezes esse trajecto era feito debaixo de fortes temporais de chuva e neve! Mas a Srª. Laurinda resistia a tudo, vencia todas as agruras da viagem, para chegar à Gralheira, para vender o seu peixe e matar a fome aos que, como ela, eram pobres. A venda poucas vezes era a dinheiro. Recebia ovos, centeio ou milho em troca das sardinhas, porque o dinheiro era escasso. Essa forma de pagamento tornava a viagem de regresso mais penosa ainda porque continuava de canastra cheia e com uma mercadoria muito melindrosa. Uma escorregadela. uma queda podia significar a perda total do recheio. quando se tratava de ovos. A Sr.a Laurinda era pessoa muito educada de extrema confiança e olhada com carinho por toda a gente da Gralheira. Aqui pernoitou muitas vezes e passou grande parte da sua vida. No Natal, era a alegria das crianças, quando aqui chegava com as tão desejadas pinhas, que trocava por hortaliça e carne de porco. Na Gralheira não havia pinheiros e os pinhões do Natal só ela ou os azenheiros, os traziam. Do seu permanente contacto com a gente da Gralheira, tornou-se num membro de cada família. Quanto ao seu marido - o Sr. Manuel - foi protagonista de uma cena pouco comum e que. certamente. nunca mais esqueceu. Certo dia de Verão, depois de ter vendido o seu peixe, descansava sentado junto de um estabelecimento comercial. A dada altura, apeteceu-lhe fumar o seu mata-ratos e puxou do isqueiro para acender o cigarro. Não reparou na presença de dois fiscais que estavam ali ao lado e que ao vê-lo utilizar o isqueiro, imediatamente lhe deram voz de prisão. Era assim mesmo. O uso do isqueiro sem licença, dava motivo a prisão. O homem, a principio, ficou atónico, sem saber o que fazer; mas depois, embora obedecendo à ordem de prisão que lhe fora dada, convenceu os fiscais a deixá-lo passar junto de uma eira. onde um grupo de homens malhava centeio, alegando que teria de dar um recado a um deles. Os fiscais acederam, mas mal o homem se viu junto da eira, deu um safanão ao fiscal que o segurava e esgueirou-se por entre os homens. enquanto estes, de manguais na ar, procuravam dificultar a passagem dos captores. O Sr. Manuel saltou paredes e socalcos e foi enfiar-se debaixo da cama da minha avó, depois de ter entrado pela janela da cozinha. Escusado será dizer que minha avó ficou apavorada ao ver entrar o homem em casa daquela maneira, mas logo que o reconheceu e ele contou o que se passava, ficou tranquila e procurou esconde-lo o melhor que pôde. Assim o Sr. Manuel escapou à prisão. Tanto o Sr. Manuel como sua mulher, já faleceram, mas a gente da Gralheira que os conheceu, não os esquece e ainda hoje fala neles. A Sra. Laurinda só deixou de vir à Gralheira, quando as forças lhe faltaram. Alguns anos atrás, veio cá por alturas do Natal. Não veio vender peixe, não trouxe canastra, não veio a pé. Veio no carro da filha, também ela companheira de viagem no seu tempo de criança. Veio matar saudades e fazer uma visita a esta gente que lhe queria bem. E então pôde verificar quanta amizade por aqui semeou com a sua honestidade, com a sua bondade e com a sua honradez. Para além dos abraços e beijos, tudo lhe quiseram oferecer, desde a boa tronchuda e carne de porco. A carrinha em que veio. foi pequena para transportar tanta coisa. A Sra. Laurinda partiu, mas a recordação ficou. As suas sardinhas ainda hoje são lembradas pelos mais idosos. Que Deus a tenha em sua companhia.
Gralheira, Janeiro de 1986 |