Amores campestres Naquela longínqua manhã de Março, a tia Rosa levantara-se cedo como era seu costume. As tarefas de casa, as lidas do campo, não lhe permitiam dormir a manhã na cama. Tia Rosa era mulher de 50 anos, saudável e robusta. O marido morrera há seis anos, deixando-a entregue à viuvez e à difícil tarefa de angariar meios de subsistência para si e sua filha Maria. Naquela manhã levantara-se mais cedo ainda, porque era preciso fazer a barrela das meadas de linho, que fiara durante o Inverno. A barrela ia ser feita lá para as bandas da Feiteira, onde havia água em abundância e lameiras jeitosas para corar. Era preciso, porem, transportar o cortiço, as panelas de barro preto, as meadas, a cinza, um sem número de objectos e coisas, indispensáveis à feitura da barrela. A Maria, moça de 20 anos, ainda dormia tranquilamente quando a mãe se levantou. De estatura mediana, forte e saudável, tinha longos cabelos loiros presos em duas tranças enroladas na nuca, rosto correcto, faces coradas onde brilhavam dois olhos castanhos. Quando a mãe a chamou sonhava um sonho lindo, que foi interrompido por dois safanões que a mãe lhe dera, para a despertar daquele sono tão profundo. Maria levantou-se confusa sem saber se acreditar na placidez do sonho, se na realidade da vida. Mas, a mãe, de voz firme e autoritária, desfez-lhe todas as dúvidas ao dizer-lhe que comesse qualquer coisa e se pusesse a caminho da Feiteira, com o cortiço e o cesto das meadas. Em pouco tempo tudo foi transportado e a barrela ia começar. A Lenha já crepitava na fogueira, rodeada de panelas de barro cheias de água. Enquanto estas não ferviam, iam lavando, nas águas límpidas e purificadoras da levada, alguma roupa que também iria entrar na barrela. Um Sol deslumbrante inundava toda a serra, fazendo espelho nas águas correntes que cintilavam como estrelas. Já esvoaçavam as primeiras andorinhas e uma ou outra avezita já se atrevia a cantar! Nos sabugueiros despontavam as primeiras folhas e os insectos zumbiam nos salgueiros cobertos de "gatos"! Maria contemplava extasiada aquela mensagem da primavera, aquele dia cheio de Sol e de luz. E tão mergulhada estava nesta contemplação, que nem reparou que a água tinha faltado na levada. Foi sua mãe que a chamou a atenção e a mandou ir até ao ribeiro procurar a agua que alguém tornara. Maria obedeceu, não muito da sua vontade, mal sabendo ela a agradável surpresa que a esperava Mas afinal quem lhe teria tornado a água. Era uma incógnita que bailava na cabeça da moça. Nunca ninguém naquela época do ano tornava a agua no ribeiro! Quem seria então? António, era um mocetão de 23 anos, que há muito se apaixonara pela Maria. Desde logo correspondido, viviam agora um para o outro. Mas António era um rapaz pobre, que de seu tinha apenas os braços para trabalhar e um coração para amar. A mãe de Maria não via com bons olhos aquela namoro e tudo fazia para o impedir. António seguia de longe os passos da sua amada e espreitava sempre uma oportunidade para se encontrar com ela. Nessa manhã seguiu para a Feiteira; mas como abeirar-se dela se a mãe estava presente? Pegou na sachola raparigueira, com ramagens gravadas no aço e dois corações esculpidos no cabo, e caminhou para os lados da Feiteira. Já que não podia chegar junto dela, contentava-se em contemplá-la de longe. Deu a volta pelo outeirão, de onde pode localizar as duas a lavar a roupa na levada. Estava ali tão perto, mas tão longe sem lhe poder falar. Ali permaneceu durante algum tempo naquela contemplação até que de repente lhe surgiu uma ideia luminosa. Cortar-lhe a água no ribeiro, onde por certo, a Maria ia buscá-la, por ordem da mãe. Se assim o pensou logo o fez. Oculto por entre giestas e amieiros chegou junto do açude onde cortou a água. Escondeu-se entre os arbustos e ficou à espera da chegada da Maria. Esta, longe de encontrar ali o dono do seu lindo sonho daquela madrugada, caminhou distraída até ao ribeiro. Tapou a água e, quando se preparava para regressar, foi interrompida por uma voz bem conhecida que lhe falou assim: - Olá Maria! Então assim me tornas a água!? Maria voltou-se e quase não conseguiu suster um grito de surpresa e alegria. O seu desejo era correr para os braços do António, mas a sua compostura, a sua decência não lho permitiam. O rapaz aproximou-se e ficou a dois passos da Maria, como mandavam as regras entre namorados, naquele tempo. Mas os seus olhos brilhavam de felicidade, tanto por o seu plano ter dado certo, como por estar ali junto da moça que amava. Encostado à sachola e ela sentada numa pedra, ali conversaram durante alguns minutos que lhes pareceram segundos. O Sol parecia agora mais quente e a água mais límpida! Tudo que os cercava parecia estar em festa! E estes momentos de felicidade não teriam fim se a tia Rosa, desconfiada de tanta demora, não tivesse chamado pela Maria. Como que acordados por aquela incómoda voz, a moça despediu-se com um ligeiro aceno e correu veloz para junto da mãe. O António permaneceu algum tempo mais no açude como que a saborear ainda as delícias daquele encontro. Depois, caminhou ribeiro acima, longe das vistas da tia Rosa, com o coração a transbordar de felicidade e amor. E já longe, para que tia Rosa não percebesse, começou a cantar assim: Sem o
brilho dos teus olhos Os teus
cabelos ao vento.
No topo
daquela serra Maria, debruçada sobre o lavadouro, apercebeu-se do canto longínquo de seu amado e em jeito de resposta, também cantou: Meu amor
já tão longe
Nos
olhos do meu amor
Entretanto as panelas ferveram; e o cortiço assente em sítio apropriado, foi recebendo primeiro uma manta de tiras, depois alguma roupa e a seguir as meadas sempre envolvidas em cinza e água fervente. Cheio até ao cimo, o cortiço foi tapado, com o recheio bem abafado até ao dia seguinte. Quando à tardinha a Maria regressou a casa, sentia-se feliz. E naquela noite sonhou com a barrela, com a água, com o ribeiro e sobretudo com o António. Gralheira. 4 de Junho de 1989 |